terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A Noite do Cego

por Rangel Alves da Costa*

Logo ao amanhecer, e sentiu isso porque o galo cantou, ele levantou, abriu os olhos, caminhou até adiante para abrir a janela e se deparou com a claridade ainda entristecida do dia. Sentiu o vento soprar no seu rosto e um friozinho invadir os seus olhos. Um passarinho veio e pousou bem ao lado de onde estava, no portal da janela.

Viu o sol surgindo ora marrom, ora esverdeado, outras vezes irradiava uma cor azulada, para em seguida se quietar no violeta. O jardim adiante estava todo vermelho, talvez estivesse ocre ou mesmo sem cor, tinha duvidas, não sabia direito. As nuvens eram negras da cor da água, e a água muitas vezes tinha um tom violeta. Achava tudo bonito, mas não tão belo quanto aquela suave voz feminina que todas as manhãs passava na sua janela e dava bom dia. Que cabelos lindos ela tem, branquinhos da cor de sangue; seus olhos teriam que ser lilases, pois essa era a cor mais sublime que imaginava existir.

Encantador igual aos olhos da menina que passava só mesmo o arco-íris. Não aquele arco-íris das pessoas mentirosas, todas dizendo que suas cores eram o vermelho, o laranja, o amarelo, o verde, o azul, o anil ou indigo e o violeta. Não ele tinha certeza de que suas cores verdadeiras eram o branco, o cinza, o creme, o fosco, o ferrugem, o verniz e o desencarnado. E por que tais matizes? Porque arco-íris só é bonito com essas cores mais leves, que é pra não pesar muito lá em cima e aquela nuvem diferente e encantadora cair e se desmanchar em sete cores mortas.

Um dia ele perguntou à irmã: "Se eu pedir uma coisa azul, bem azul, você me traz?". "Lógico que sim, meu irmão, mas azul tem em muitas coisas, em muitos lugares, num montão de objetos, e em que você preferia?", falou a irmã. E ele continuou: "Primeiro me fale o nome de algumas coisas onde tem um azul bem bonito". "Existem diversos lugares onde o azul é mais bonito. Eu mesma prefiro o azul do céu, que é muito bonito e sempre vai mudando de cor, ora um azul mais clarinho, ora um azul mais corado. Mas também tem o azul da água, que é lindíssimo, e é um azul onde você praticamente enxerga as outras cores no outro lado. E tem ainda o azul do...".

E ela foi prontamente interrompida: "Já chega. Quero que você me traga um pedaço do azul do céu e um pedaço do azul da água, está certo? Corra, vá buscar agora mesmo que eu estou esperando". E a irmã desesperou-se: "Mas como, meu irmão, se não posso subir lá em cima e cortar um pedaço do céu? A água eu posso trazer até aqui num copo, mas o azul do céu é impossível".

"Ora, minha irmã, vocês que veem tudo parece que não enxergam nada. É só me levar lá pra fora e deixar que eu tome banho de chuva com roupa e tudo. Tomando banho de chuva eu vou ter o azul do céu e o azul da água. Não dizem que a chuva vem lá de cima? Então se lá em cima é o céu, ela já cai azulzinha e vai me molhar todinho. E aí eu não vou ter mais essa cor verde cana que tenho hoje e vou ficar todo azul pra sempre".

A irmã o levou para o jardim e deixou que se banhasse todinho de azul. Pouco tempo depois, todo feliz com sua nova cor, pediu a irmã que quando chegasse perto da hora de dormir e se não tivesse mais chovendo ela o levasse novamente para o jardim, que era para que seus olhos enxergassem a noite. Nunca tinha enxergado o dia nem a noite, mas resolveu que queria porque queria enxergar a noite naquela noite.

"Ai meu Deus!", disse a irmã consigo mesma em voz alta. Depois chegou mais perto dele e falou carinhosamente, passando a mão pelo seu cabelo: "Meu irmão, meu anjo, eu tenho certeza que a cor da noite você conhece bem, que em toda sua vida você só tem enxergado essa maldita noite, que a sua manhã e a sua tarde, o seu sol, o seu dia, a sua lua e a sua estrela, sempre têm e terão a cor negra da noite, essa escuridão que sempre está à sua frente e impedindo seus passos para onde queira ir. Meu irmão, meu irmão, a noite está nos teus olhos e a cor da noite está em tudo que você enxerga".

"Mas eu não enxergo nada negro, escurecido. A cor que enxergo é essa que Deus me deu e que não sei qual cor é, pois nunca vi outra cor. Mas só sei que ela é linda e nunca me abandona, nem quando estou dormindo nem quando estou acordado. É sempre a mesma cor". Disse ele com sua noite molhada.

(*) Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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